Vivemos uma época em que jovens e adolescentes valorizam o ter, são extremamente individualistas e narcisistas. E o pior: os pais estão entre os culpados
Texto: Eliana Fonseca
Fotos: Bruno Cantini / Pedro Vilela / Alberto Wu
A discussão eterna do papel dos pais na falta de limites de filhos ganhou uma tese nada boa para crianças e jovens, e principalmente pais. O ensaísta e escritor norte-americano Rob Asghar está chamando de Geração N jovens que têm dificuldade de ouvir não, são narcisistas – de onde foi tirado o N, culpando os pais por um estímulo positivo excessivo a qualquer movimento dos filhos. Mesmo aqueles considerados normais e obrigatórios. E mais, o escritor afirma que esses jovens podem se tornar adultos incapazes. Especialistas, pais, educadores mineiros analisam se o que Asghar pondera pode servir aos jovens brasileiros. Será que esse é um movimento global das crianças e adolescentes? Qual o papel dos pais; da escola? E se a falta de limite chegar ao céu, é possível reverter o processo?
Logicamente, há uma série de fatores que são comuns aos jovens de todo o mundo – redes sociais, hábitos de consumo, ídolos – mas a educadora Marilena Valentim afirma que generalizar e rotular em geração N sugere uma homogeneidade que não existe. “Ainda mais se tratando do Brasil, com tantas diversidades culturais, sociais, morais, religiosas.” O psicólogo Felipe Tameirão vai mais longe. Para ele, não são somente jovens e crianças que podem ser chamados de Geração N, denominação do nosso tempo que serviria a toda sociedade, que cada vez mais valoriza o individualismo. “Então, podemos dizer que não só os adolescentes são narcisistas, já que esta é uma característica do momento atual. E, além disso, é notório que as crianças de hoje são cada vez mais inteligentes. Não me parece haver correlação entre narcisismo e incapacidade intelectual”, afirma.
Se antes a mulher era a parte que ficava em casa e cuidava dos filhos, e o formato patriarcal garantia ao homem os melhores lugares nesse mercado, atualmente, as mulheres são 41% da força de trabalho no país
Com a emancipação feminina e a entrada da mulher no mercado de trabalho, houve mudança no modelo de família até então vigente. Se antes a mulher era a parte que ficava em casa e cuidava dos filhos, e o formato patriarcal garantia ao homem os melhores lugares nesse mercado, atualmente, as mulheres são 41% da força de trabalho no país. O negativo é que essa mudança na estrutura familiar ainda não atingiu o ponto de maturação, ou seja, nos diversos ajustes e desajustes das últimas décadas, pais e filhos ainda capengam no tom e modo de agir. “De um modelo hierárquico e autoritário, escorregou-se para a indiferença, embora isso não seja regra geral, pois muitas famílias no mundo ainda adotam o estilo repressivo, crentes no poder da pancada e da repressão”, afirma Marilena.
Seja qual modelo for, a educadora afirma que a ausência dos pais – física e da educação dos filhos – é uma das questões mais dolorosas da atualidade e que ainda não encontrou resposta satisfatória. O pai e a mãe têm várias motivações para essa ausência, como a conjuntura econômica, a imposição do status social, a realização pessoal e profissional. “E uma das problemáticas estende-se ainda à fácil dissolução dos laços familiares, o que causa sempre uma angústia maior ou menor para todos os seus membros, mas, sobretudo, para as crianças e adolescentes”, diz Marilena.
Os jornalistas Fabíola Cadar e Flávio Quick, pais de Stella, de 6 anos, sempre procuram manter esse laço, independentemente dos compromissos profissionais, que os levam a várias viagens. Para evitar distância prolongada da filha, sempre que possível procuram levá-la para aproveitar o máximo de tempo juntos. Precoce, esperta e argumentadora, Stella poderia integrar a chamada Geração N, mas não é o que acontece. Fabíola afirma que, ao mesmo tempo em que a filha é questionadora, ela entende os limites. “Quando a coisa começa a ficar muito complicada, digo que é um assunto que ela ainda não consegue entender e que, por isso, os pais precisam decidir. Essa é a senha para ela saber que a discussão está encerrada”, afirma.
Educador há 18 anos, o diretor do Colégio Ruy Barbosa, Luiz Carlos Tavares, convive o tempo todo com os aspectos dessa falta de senha com a qual Fabíola e Flávio sabem lidar bem. Já atendeu alunos e pais em diferentes situações. Muitos nem percebem quando seus filhos estão com problemas e chegam a ficar surpreendidos quando são chamados à escola. Mas, ao contrário do que muita gente pensa, os representantes da Geração N são exceção e não regra. O dedo em riste para acusar alguém não é levantado por Tavares, que prefere outra análise que, sim, o modelo social não ajuda as famílias, pelo contrário, atrapalha ao propor o consumismo, o individualismo, o personalismo, o estilo de vida que confunde valores. “Vivemos atualmente num mundo deturpado”, analisa.
Em sua opinião, é uma deturpação causada pelo assédio a crianças e adolescentes, de um universo novo de informação do qual fazem parte os meios de comunicação de massa, incluindo aí a televisão e a internet. É a política de que todos podem ter o que quiserem, na hora que desejarem. “Os jovens também sofrem interferência disso e são bombardeados a cada dia com novidades a serem adquiridas. Rapidamente os objetos da moda se alteram e é preciso tê-lo com agilidade, pois é isso que é valorizado. O ter sobrepõe o ser”, complementa o psicólogo Felipe Tameirão.
O problema atinge uma proporção perigosa quando esses objetos ganham, na opinião de Tameirão, importância tão grande que passam a delimitar a existência dos jovens. A tradução na vida dessas crianças e adolescentes passa a ser sou o que tenho. “E como a existência está em jogo, não se medem esforços para ter os objetos que ajudarão a nomeá-lo, mesmo que para isso seja necessário usar da força da violência ou infringir alguma regra”, adverte o psicólogo.
É aí, na opinião de Luiz Carlos Tavares, que o diálogo mostra-se como uma das principais possibilidades para a mudança dessa criança ou adolescente. Não adianta tapar o sol com a peneira ou suprir a ausência com bens materiais. É preciso ter disponibilidade para o filho, e isso implica o enfrentamento do problema e a busca de alternativas. “É preciso que os pais se mobilizem e procurem entender as razões”, afirma.
E nesse contexto, é bom lembrar que a escola é importante, mas não substitui os pais na educação. O psiquiatra Márcio Candiani observa que crianças e adolescentes são mais suscetíveis a exemplos do que palavras. Então, não adianta os pais falarem algo e agirem de forma diferente. E por mais que o diálogo seja importante, é bom lembrar que pai é pai e amigo é amigo. Há momentos em que o pai precisa exercer sua autoridade, e que a criança e o jovem pedem limites. “Superproteger pode levar à formação de narcisos, pessoas sem limites, que não têm noção do que é lei”, afirma.
Fabíola e Flávio acreditam que a coerência para educar os filhos é ponto primordial para uma relação social saudável. A escola é o ponto de interseção para uma orientação conjunta que se estende de dentro de casa para os outros caminhos das crianças e jovens. “Algo importante que aprendemos na criação de Stella é que a criança precisa ouvir coisas coerentes. Do contrário, ela fica receosa e passa a não confiar em nenhuma das informações”, observa.
E, nesse, e em outros momentos, quando não há essa coerência, somada com a ausência dos pais, o que pode acontecer segundo especialistas, é uma inversão de valores, onde quem comanda a casa são os filhos e os pais ficam à mercê de suas vontades. É como se esses filhos assumissem a tarefa de determinar os rumos da vida familiar. E o que consideram pior, eles também passassem a assumir o lugar de pai e mãe o que leva a família, consequentemente, a uma crise profunda de autoridade e identidade.
“Sigo fazendo um alerta aos pais ou responsáveis pela formação de crianças e adolescentes: é preciso assumir as responsabilidades e desempenhar seu papel social para acabar com a tirania dos filhos”, avisa Marilena. Para ela, cada vez mais os adultos se sentem menos preparados a serem responsáveis e terem autoridade diante dos seus filhos. “Não existe autoridade que não seja responsável e que também não exija, daquele que a possui, respostas e posicionamento frente à realidade”, diz.
Por mais que seja duro, ser democrático não significa fazer tudo o que os filhos desejam, ceder a todas exigências, nem comprar tudo o que pedem. Passa, ainda, em determinar o programa da família no fim de semana, alimentar pessimamente ou que só estudem quando querem. O que vale em todos os momentos, é o respeito recíproco, da abertura, da confiança, da intimidade e da expressão de sentimentos nessas relações. “Porém, isso não implica uma liberdade total e ausência de regras. Implica, sim, uma relação e educação mais flexível e consciente, onde regras e limites estão presentes.”
Como a escola é o local da sociabilidade, cabe a ela um dos papéis importantes – não o único – para contribuir para o crescimento dessa criança e adolescente. Os educadores, como Luiz Carlos Tavares, apostam na escola como local de interação em que, juntamente com a família e o aluno, é possível construir uma nova relação. “Nessa realidade, a escola tem de ser clara, transparente, discutindo todos os aspectos e tendo o jovem como prioridade.”
Fonte: Revista Viver Brasil
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